O terrível Hotel Nicanor

Nas inúmeras histórias em quadrinhos de terror publicadas no início da década de 1980, uma série em especial chamou a atenção dos leitores. Era Hotel Nicanor, criação de Juka Galvão (pseudônimo do quadrinhista e editor Ota, o Otacílio d’Assunção) com arte de Flavio Colin.

A saga do hotel e de seus tenebrosos hóspedes teve início na revista Spektro # 20 (1981), da Editora Vecchi, considerada uma das melhores revistas do gênero já publicadas no Brasil.

Na trama Os estranhos hóspedes do Hotel Nicanor, dois ladrões de joias em fuga acabam com o carro atolado perto de um hotel. Sem escolha, decidem hospedar-se para passar a noite. Mas são surpreendidos ao deparar-se com Nicanor, um idoso responsável pelo local, que implora a ambos que não passem a noite ali e que vão embora enquanto podem, já que está esperando hóspedes que não vão aceitar companhias indesejadas.

Eles não dão ouvidos às súplicas e exigem um quarto para dormir. Sem ter o que fazer, Nicanor pede que, ao menos, não saiam do quarto à noite, de maneira alguma.

Os avisos não surtem efeito. Ao ouvir uma voz feminina, um dos gatunos se aventura atrás da mulher e mal tem tempo de se esconder quando diversos monstros invadem o hotel. Eles vieram para a sua reunião de fim de semana, daí o lugar não ter mais reservas. Nicanor era obrigado a ser conivente com aquilo tudo.

Ao perceber que outros humanos estão no local, o presidente (líder dos estranhos seres), suas filhas (uma delas não come carne humana) e os monstros consideram que aquilo é um “presente” de Nicanor, na forma de comida fresca.

Hotel NicanorHotel Nicanor

No fantástico traço de Colin, os monstros ganham vida em figuras assustadoras e engraçadas, a maioria uma estranha mistura de animais com humanos, ou seja, seres antropomórficos.

Sobre esse saudoso desenhista, o jornalista Gonçalo Júnior, na introdução do livro Vida traçada – Um perfil de Flavio Colin, assim o define: “O gigantismo de sua produção e a grandiosidade de sua obra ainda estão por ser mapeados e devidamente estudados, compreendidos e consagrados em obras mais extensas como um acontecimento das artes de um dos autores de quadrinhos mais importantes em todo o mundo e em todos os tempos”.

Sem dúvida, a arte de Colin é um acontecimento. Ela tem algo de literatura de cordel e de xilogravura, mas o próprio negava isso. Na verdade, o autor tinha o que somente os maiores nomes das artes do mundo conseguem – um traço próprio, de qualidade única e fácil identificação, no qual é nítido que certa simplicidade só fora atingida graças a anos e anos de prática, estudo e muito, muito talento.

Além de tudo, como Colin contou ao Universo HQ e deixou claro em várias entrevistas, ele era um grande fã do gênero terror e, mais que isso, um eterno apaixonado pela arte dos quadrinhos, o que redundou em seu bom volume de produção.

Assim, seguindo com a saga do hotel, a revista Spektro # 21 trouxe uma nova aventura da série, De volta ao Hotel Nicanor.

Spektro # 21Spektro # 23

Dando sequência à trama, dois policiais aparecem no hotel procurando pelos ladrões de joias. Eles suspeitam do nervosismo de Nicanor e decidem examinar os quartos. Mas os “hóspedes” estão acordando e decidem que a dupla será um excelente café da manhã. Um deles consegue avisar a polícia, e o local é cercado. Assim, os monstros acabam com tanta comida humana à disposição que terminam por fazer um churrasco.

Já em Spektro # 22, na HQ Domingo sangrento no Hotel Nicanor, avisado do acontecido, o exército ataca o lugar. Aviões, tanques, jipes, metralhadoras… nada adianta.

E, quando têm o seu descanso interrompido, os monstros dão um jeito na situação, com violência, bruxaria e muito humor negro, inclusive na forma de um casal (ele, um monstrengo; ela, a filha do presidente, de forma humana e quase sempre nua) que dá um jeito de namorar e até arriscar algumas acrobacias sexuais em meio a tanta confusão, o que acaba num monstruoso casamento.

No final, como o hotel estava visado demais, os monstros decidem ir embora. Nicanor fica feliz com o acontecido, porém, por considerarem-no um amigo leal, ele é levado “na marra” para conhecer a ilha que servia de moradia aos estranhos seres.

Mais uma vez, todo o sarcasmo e humor negro destilados no roteiro de Ota encontram forma e estilo perfeitos no traço de Colin. Essa terceira HQ da saga abraça gêneros mais abrangentes que o puro e simples terror trash, misturando-o com pornochanchada, uma pitada de escatologia e até certa crítica social, em especial na cobertura da imprensa aos fatos ocorridos no hotel, na base do “vale tudo” para ter o furo de reportagem. Até mesmo virar comida de monstro.

A saga sofreu um interlúdio e, em Spektro # 23, foi apresentado o Álbum de família dos monstros do Hotel Nicanor, em quatro páginas com as principais figuras da série – o chefe do bando, também conhecido como “presidente”, sua esposa, que é bruxa, suas duas filhas, o genro, o time de futebol, entre outros, que incluem até Nicanor.

Com o fim da revista Spektro, na edição # 28, a última aventura da saga só seria publicada no título Almanaque de Terror # 4, em 1982, também da Vecchi.

Almanaque de Terror # 4Hotel Nicanor

Em Nicanor na Ilha dos Monstros, o personagem é obrigado a fingir que está feliz por conhecer o lar de seus estranhos “amigos”, mas uma nova confusão se avizinha: o filho de um monstro de uma ilha vizinha de rivais estava apaixonado pela recém-casada filha do presidente, e decide raptá-la.

Tudo acaba numa tremenda confusão e num gancho no final da HQ, com uma declaração de guerra entre as ilhas, história que nunca veio a ser publicada.

Muito tempo depois, em 1994, a saga seria retomada em título próprio, com o nome Hotel do Terror (formato americano, 24 páginas em preto e branco), produzido por Ota e lançado no selo Ota Comix.

No editorial, Ota conta que o sucesso da série quando publicada pela Vecchi ocorreu principalmente graças ao traço genial de Colin, e que com a contínua evolução da arte do desenhista, surgiu a ideia de fazer um remake.

Além disso, a série original tinha alguns furos e erros de continuidade que seriam arrumados. E também alguns fatos deixados no ar que seriam esclarecidos.

Ainda de acordo com o editorial, a série completa seria publicada em três volumes e havia até a ideia da criação de um RPG baseado no universo do Hotel do Terror. Mas, infelizmente, o título não passou do primeiro número, que trouxe três HQs, sendo um remake e duas inéditas.

Os estranhos hóspedes do Hotel Nicanor revisita a primeira HQ da saga, mantendo o roteiro e a estrutura da HQ original, mas com nova arte de Colin. Perguntas mostra o filho pequeno do presidente fazendo diversas perguntas a sua babá, esclarecendo como funciona o “governo” da Ilha Monstro. E, finalmente, Recordações apresenta o começo de tudo e como Nicanor conheceu os monstros.

Hotel Nicanor é mais uma das tantas HQs desse grande mestre da Nona Arte brasileira, que também pode ser relembrado em títulos como Filho do Urso e outras histórias, O Curupira, Estórias Gerais e Fawcett, dentre outros.

E fica a certeza de que, assim como a principal característica dos hóspedes do Hotel Nicanor, há uma palavra que pode bem tentar resumir e definir o talento de Flavio Colin, ainda que talvez não seja o bastante: monstruoso!

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